No mundo da rua: itinerários terapêuticos de pessoas em situação de rua com transtornos mentais na busca por cuidado
Publication year: 2020
Este estudo trata sobre as trajetórias das pessoas em situação de rua com transtornos mentais na busca por cuidado, considerando que fazem parte de um contingente que habita as ruas, em uma situação de exclusão naturalizada ao longo do tempo e requerem cuidados particularizados, que ofereçam flexibilidade e sejam centrados em suas experiências. As maneiras como o buscam, como procuram certas formas de tratamento, como se comportam em relação a ele e a avaliação dos seus resultados dependem, em grande medida, dos significados culturais e expectativas associados à experiência da doença. Assim, o objetivo desta pesquisa foi analisar os itinerários terapêuticos das pessoas em situação de rua com transtornos mentais. Consiste de um estudo de abordagem qualitativa, que teve como caminho teórico-metodológico as perspectivas dos itinerários terapêuticos e dos setores de cuidados de saúde. O itinerário terapêutico enfatiza a visão do usuário e seus arranjos organizativos ao longo das experiências de adoecimento. Permite entender como escolhe, avalia e adere, ou não, aos tratamentos prescritos, em suas redes sociais, além de evidenciar outros aspectos envolvidos no cuidado, sobretudo simbólicos, sociais e culturais. Foram analisados na perspectiva dos setores de cuidado em saúde, propostos por Arthur Kleinman - popular, folk e profissional. Para obtenção do material empírico, foi utilizada a entrevista narrativa, realizada com pessoas em situação de rua com transtornos mentais acompanhadas por um Consultório na Rua, na cidade de Porto Alegre.
Os eixos temáticos que orientaram a análise das narrativas produzidas foram:
concepções de cuidado, interpretação da doença e itinerários terapêuticos. As concepções de cuidado delineadas foram, o cuidado: caritativo, emancipatório; espiritual; enquanto controle; afetivo e altruísta. Foi constatada a ênfase na perspectiva de cuidado caritativo, envolvendo pessoas e instituições que suprem necessidades relativas à alimentação, higiene, abrigo, vestuário e educação. A partir do eixo interpretação da doença, emergiram as perspectivas relacionadas a: depressão, experiências sensoperceptivas, ser nervosa, surtos, uso de drogas e comportamentos suicidas. Evidenciou-se que os participantes recebem diagnósticos psiquiátricos heterogêneos e incongruentes e as (re)interpretações que fizeram do sistema explicativo da psiquiatria, a partir de suas experiências de sofrimento, e as maneiras próprias de abordar, lidar e legitimá-lo, tiveram influência de sistemas culturais, sociais, políticos e econômicos. Os itinerários terapêuticos foram analisados inseridos em um contexto, composto de diversos atores, eventos e experiências, que levaram a diferentes formas de enfrentamento, interpretações e escolhas, resultando em itinerários amplos, diversificados e dinâmicos. O setor popular constituiu-se enquanto importante local e compartilhamento de cuidado, no qual as redes de apoio e busca por cuidado foram compostas, nas trajetórias iniciais, por figuras familiares e aparentadas. Com a ruptura desses vínculos, foram constituídas novas relações de apoio no mundo da rua. Esse setor também foi representado pela rede comunitária, relacionada à subsistência no espaço da cidade e pelo trabalho. O setor folk estabeleceu-se como parte dos itinerários através de crenças religiosas, evidenciando as igrejas, sobretudo a evangélica, e as figuras de Deus e de Exu. Caracterizou-se como um setor aberto, de fácil acesso, e que através de seus dogmas e rituais, propiciou conforto e alívio na maior parte das situações. O setor profissional, composto pelos subsetores da assistência social, da saúde e da justiça e segurança, esteve voltado a ações assistencialistas, de controle e medicalizantes, e as suas estruturas são desarticuladas e pouco voltadas a um projeto emancipatório e de inclusão social. Esse estudo mostrou que identificar as especificidades do grupo estudado exigiu acessar as (re)significações e (re)interpretações de suas experiências, as formas como lidaram e como buscaram ajuda. Em relação ao setores de cuidado, demonstrou o potencial transformador de cuidado do setor folk e evidenciou a invisibilidade significativa do setor saúde nos itinerários terapêuticos.
This study concerns the trajectories of homeless persons with mental disorders in the search for care by taking into consideration the fact that they belong to a contingent of people who inhabit the streets in an exclusion situation that has become naturalized over time and who require peculiar support that be flexible and centered in their experiences. The ways how they search for care, how they look for certain forms of treatment, how they behave themselves in relation to it and the evaluation of the findings depend highly on the cultural meanings and expectations in connection with the experience of the disease. Therefore, the objective of this research is to analyze the therapeutic routes of the homeless people with mental disorders. The approach is qualitative while the theoretical and methodological path comprises the perspectives of therapeutic routes and those of health care. The therapeutic route emphasizes the vision of the user and his organization arrangements in the course of the disease experiences. In addition, it allows understanding how the user chooses, evaluates and sticks or not to the prescribed treatments in his social networks besides evidencing other aspects involved in the care mainly the symbolic, social and cultural ones. The routes were analyzed from the perspective of the health care sectors proposed by Arthur Kleinman, i. e., the popular, folk and professional ones. The empiric material was obtained through narrative interviews carried out with homeless people with mental disorders assisted by a Street Medical Staff in the city of Porto Alegre, RS. The thematic axes that guided the analysis of the produced narratives were concepts of care, interpretation of the disease and therapeutic routes. The outlined care concepts comprised charitable, emancipatory, spiritual, controlling, affective and altruistic ones. It has been observed the emphasis on the perspective of charitable care involving people and institutions that provide needs regarding food, hygiene, shelter, clothing and education. From the disease interpretation axis, the following perspectives have emerged related to depression, sensor`s perceptive experiences, nervous condition, psychotic breaks, use of drugs and behaviors. It became evident that the participants receive heterogeneous and incongruous psychiatric diagnose while the (re)interpretations they made of the psychiatry explanation system from their suffering experiences and from their own ways of approaching, dealing and legitimizing it were influenced by cultural, social, political and economic systems. The therapeutic routes were analyzed by considering their insertion in a context composed by several actors, events and experiences that led to different forms of confrontation, interpretations and choices that resulted in wide, diverse and dynamic routes. The popular sector became an important place and care share where the support networks and care search comprised family members and relatives within the starting routes. Upon the break of these bonds, new support relations were constituted in the street world. This sector was also represented by both the community network regarding livelihood in the city space and the work. The folk sector has established itself as part of the routes through religious beliefs with emphasis to churches, mainly the evangelic one, and to God and Exu. It has been characterized as an open sector of easy access which provided comfort and relief through its dogmas and rites in most of the situations. The professional sector is composed by the sub-sectors of social, health, legal and safety assistance and it has been dedicated to actions of assistance, control and medical care while its structures are not articulated and are little addressed to a project of emancipation and social inclusion. This study showed that identifying the peculiarities of the studied group required access to the (re)significations and (re)interpretations of their experiences, the ways how they dealt with them and how they looked for help. As to the care sectors, it showed the transforming care potential of the folk sector and it evidenced the significant invisibility of the health sector in the therapeutic routes.